terça-feira, 13 de março de 2012

Sobre a proibição do uso de crucifixos

Tempos apocalípticos 
Paulo Brossard 

Minha filha Magda me advertiu de que estamos a viver tempos do Apocalipse
sem nos darmos conta; semana passada, certifiquei-me do acerto da sua
observação, ao ler a notícia de que o douto Conselho da Magistratura do
Tribunal de Justiça do Estado, atendendo postulação de ONG representante de
opção sexual minoritária, em decisão administrativa, unânime, resolvera
determinar a retirada de crucifixos porventura existentes em prédios do
Poder Judiciário estadual, decisão essa que seria homologada pelo Tribunal.
Seria este “o caminho que responde aos princípios constitucionais
republicanos de Estado laico” e da separação entre Igreja e Estado.

Tenho para mim tratar-se de um equívoco, pois desde a adoção da República o
Estado é laico e a separação entre Igreja e Estado não é novidade da
Constituição de 1988, data de 7 de janeiro de 1890, Decreto 119-A, da lavra
do ministro Rui Barbosa, que, de longa data, se batia pela liberdade dos
cultos. Desde então, sem solução de continuidade, todas as Constituições,
inclusive as bastardas, têm reiterado o princípio hoje centenário, o que não
impediu que o histórico defensor da liberdade dos cultos e da separação
entre Igreja e Estado sustentasse que “a nossa lei constitucional não é
antirreligiosa, nem irreligiosa”.

É hora de voltar ao assunto. Disse há pouco que estava a ocorrer um engano. A meu juízo, os crucifixos existentes nas salas de julgamento do Tribunal lá não se encontram em reverência a uma das pessoas da Santíssima Trindade,
segundo a teologia cristã, mas a alguém que foi acusado, processado,
julgado, condenado e executado, enfim justiçado até sua crucificação, com
ofensa às regras legais históricas, e, por fim, ainda vítima de
pusilanimidade de Pilatos, que tendo consciência da inocência do perseguido,
preferiu lavar as mãos, e com isso passar à História.

Em todas as salas onde existe a figura de Cristo, é sempre como o
injustiçado que aparece, e nunca em outra postura, fosse nas bodas de Caná,
entre os sacerdotes no templo, ou com seus discípulos na ceia que Leonardo
Da Vinci imortalizou. No seu artigo “O justo e a justiça política”,
publicado na Sexta-feira Santa de 1899, Rui Barbosa salienta que “por seis
julgamentos passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e
em nenhum teve um juiz”… e, adiante, “não há tribunais, que bastem, para
abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos
magistrados”.  Em todas as fases do processo, ocorreu sempre a preterição
das formalidades legais. Em outras palavras, o processo, do início ao fim,
infringiu o que em linguagem atual se denomina o devido processo legal. O
crucifixo está nos tribunais não porque Jesus fosse uma divindade, mas
porque foi vítima da maior das falsidades de justiça pervertida.

Não é tudo. Pilatos ficou na história como o protótipo do juiz covarde. É
deste modo que, há mais de cem anos, Rui concluiu seu artigo, “como quer te
chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom
ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.

Faz mais de 60 anos que frequento o Tribunal gaúcho, dele recebi a distinção
de fazer-me uma vez seu advogado perante o STF, e em seu seio encontrei
juízes notáveis. Um deles chamava-se Isaac Soibelman Melzer. Não era cristão
e, ao que sei, o crucifixo não o impediu de ser o modelar juiz que foi e que
me apraz lembrar em homenagem à sua memória. Outrossim, não sei se a
retirada do crucifixo vai melhorar o quilate de algum dos menos bons.

Por derradeiro, confesso que me surpreende a circunstância de ter sido uma
ONG de lésbicas que tenha obtido a escarninha medida em causa. A propósito,
alguém lembrou se a mesma entidade não iria propor a retirada de “Deus” do
preâmbulo da Constituição nem a demolição do Cristo que domina os céus do
Rio de Janeiro durante os dias e todas as noites. 



Fonte: Zero Hora 12/03/2012

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